quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Crônicas - Evocação da rua

Le Corbusier pensou que as pessoas seriam mais felizes e sociáveis morando em edifícios do que em casas, por ocuparem um mesmo espaço, ainda que vertical, compatilharem áreas comuns e conservarem um patrimônio que, afinal, era de todos. Condominium, propriedade em companhia de socius, aliado, amigo.
Da infância à juventude, morei em casa, Conhecia todo mundo da Rua Nicarágua. Sabia o múmero da placa da casa de cada um. (E lembro até hoje.) Morando em apartamento, não sei os andares dos meus vizinhos, alguns, nem os nomes.
Quando arriava a bateria dum carro, não faltava menino pra empurrar. A gente brincava em rua de terra, sem calçamento. Pega, vôlei, espião e academia, meninas e meninos. Badoque, futebol, bicicleta, papagaio, pião e bolda de gude, só os meninos. Não me lembro de meninas entre elas na rua; sozinhas, brincavam no quintal de casa. À noitinha, conversavam sentadas no meio-fio, arrumadas, calçadas, cheirinho de água de colônia.
Vez por outra, eu ouvia a voz de Dona Cremilda e via-lhe a mão por sobre o muro, segurando uma xícara vazia: "Diga a sua mãe que estou precisando de uma xicrinha de azeite." No dia seguinte, a xícara voltava mais cheia do que tinha ido.
Minha casa era das poucas que tinha telefone. "Por favor, pode dar um recado na casa de Dr. Fernando? "Posso usar o telefone?" "Dona Malva pediu pra chamar um carro de aluguel" (o táxi de antigamento, sem taxímetro). A casa de Dr. Antônio Figueira foi a primeira a ter televisão. A gente, televisinhos. Mais de vinte meninos sentados no chão da sala.
Carambola do quintal de Mário Leão e Cazuza Holanda; goiaba e uva branca de Seu Oswaldo; cajá de Dr. Paulo Otaviano; fruta-pão e azeitona de Gilberto Osório; pitomba, sapoti e cana do sítio da esquina; manga de todo canto; e caju e coco lá de casa.
Seu Oswaldo e Dona Léa passeavam na calçada de braços dados antes da ceia, para inveja das mulheres de maridos que não passeavam.
No São João, bandeirinhas de papel coloridas e fogueiras na rua. A maior era sempre a de Dr. Bezerra. Dona Léa fazia um balão com as cores do Sport, que precisava de escada e muitos homens para soltá-lo.
"Mamãe mandou essa canjiquinha pra Dona Lenyr." No dia seguinte, minha mãe fazia um bolo pra não devolver o prato vazio.
Aos quarenta e poucos anos, voltei a morar na Rua Nicarágua, no edifício que foi construido onde fora a casa de meu pai. Não conheço ninguém. Nunca visitei nem fui visitado. Sei o nome de poucos. Por vezes, quero ser gentil, apertar o botão do elevador. Mas não sei o andar em que moram.
Hoje, é educado e fino não se interessar pela vida dos outros. Como se interesse e convivência fossem sinônimos de bisbilhotice. "Só quero saber da minha porta pra dentro."


Le Corbusier imaginou condôminios felizes porque não conheceu os vizinhos da Rua Nicarágua. Não ouviu os vendedores, a gaita do amolador de tesoura nem o triângulo do cavaquinho. Não viu namoro no ortão, não ganhou romã de Dona Aurélia no Dia de Reis, não comeu a macarronada de Dona Hilda nem leu Manuel Bandeira: "A gente brincava no meio da rua".

Joca Souza Leão

(2006)

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