Le
Corbusier pensou que as pessoas seriam mais felizes e sociáveis morando
em edifícios do que em casas, por ocuparem um mesmo espaço, ainda que vertical,
compatilharem áreas comuns e conservarem um patrimônio que, afinal, era de
todos. Condominium, propriedade em companhia de socius, aliado, amigo.
Da
infância à juventude, morei em casa, Conhecia todo mundo da Rua Nicarágua.
Sabia o múmero da placa da casa de cada um. (E lembro até hoje.) Morando em
apartamento, não sei os andares dos meus vizinhos, alguns, nem os nomes.
Quando
arriava a bateria dum carro, não faltava menino pra empurrar. A gente brincava
em rua de terra, sem calçamento. Pega, vôlei, espião e academia, meninas e
meninos. Badoque, futebol, bicicleta, papagaio, pião e bolda de gude, só os
meninos. Não me lembro de meninas entre elas na rua; sozinhas, brincavam no
quintal de casa. À noitinha, conversavam sentadas no meio-fio, arrumadas,
calçadas, cheirinho de água de colônia.
Vez
por outra, eu ouvia a voz de Dona Cremilda e via-lhe a mão por sobre o muro,
segurando uma xícara vazia: "Diga a sua mãe que estou precisando de uma
xicrinha de azeite." No dia seguinte, a xícara voltava mais cheia do que
tinha ido.
Minha
casa era das poucas que tinha telefone. "Por favor, pode dar um recado na
casa de Dr. Fernando? "Posso usar o telefone?" "Dona Malva pediu
pra chamar um carro de aluguel" (o táxi de antigamento, sem taxímetro). A
casa de Dr. Antônio Figueira foi a primeira a ter televisão. A gente,
televisinhos. Mais de vinte meninos sentados no chão da sala.
Carambola
do quintal de Mário Leão e Cazuza Holanda; goiaba e uva branca de Seu Oswaldo;
cajá de Dr. Paulo Otaviano; fruta-pão e azeitona de Gilberto Osório; pitomba,
sapoti e cana do sítio da esquina; manga de todo canto; e caju e coco lá de
casa.
Seu
Oswaldo e Dona Léa passeavam na calçada de braços dados antes da ceia, para
inveja das mulheres de maridos que não passeavam.
No
São João, bandeirinhas de papel coloridas e fogueiras na rua. A maior era
sempre a de Dr. Bezerra. Dona Léa fazia um balão com as cores do Sport, que
precisava de escada e muitos homens para soltá-lo.
"Mamãe
mandou essa canjiquinha pra Dona Lenyr." No dia seguinte, minha mãe fazia
um bolo pra não devolver o prato vazio.
Aos
quarenta e poucos anos, voltei a morar na Rua Nicarágua, no edifício que foi
construido onde fora a casa de meu pai. Não conheço ninguém. Nunca visitei nem
fui visitado. Sei o nome de poucos. Por vezes, quero ser gentil, apertar o
botão do elevador. Mas não sei o andar em que moram.
Hoje,
é educado e fino não se interessar pela vida dos outros. Como se interesse e
convivência fossem sinônimos de bisbilhotice. "Só quero saber da minha
porta pra dentro."
Le
Corbusier imaginou condôminios felizes porque não conheceu os vizinhos da Rua
Nicarágua. Não ouviu os vendedores, a gaita do amolador de tesoura nem o
triângulo do cavaquinho. Não viu namoro no ortão, não ganhou romã de Dona
Aurélia no Dia de Reis, não comeu a macarronada de Dona Hilda nem leu Manuel
Bandeira: "A gente brincava no meio da rua".
Joca Souza Leão
(2006)
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